segunda-feira, 28 de maio de 2012

Não morres satisfeito.
A vida te viveu
sem que vivesses nela.
E não te convenceu
nem deu qualquer motivo
para haver o ser vivo.

A vida te venceu
em luta desigual.
Era todo o passado
presente presidente
na polpa do futuro
acuando-te no beco.
Se morres derrotado,
não morres conformado.

Nem morres informado
dos termos da sentença
de tua morte, lida
antes de redigida.
Deram-te um defensor
cego surdo estrangeiro
que ora metia medo
ora extorquia amor.

Nem sabes se és culpado
de não ter culpa. Sabes
que morres todo o tempo
no ensaiar errado
que vai a cada instante
desensinando a morte
quanto mais a soletras,
sem que, nascido, more
onde, vivendo, morres.

Não morres satisfeito
de trocar tua morte
por outra mais (?) perfeita.
Não aceitas teu
como aceitaste os muitos
fins em volta de ti.

Testemunhaste a morte
no privilégio de ouro
de a sentires em vida
através de um aquário.
Eras tu que morrias
nesse, naquela; e vias
teu ser evaporado
fugir à percepção.
Estranho vivo, ausente
na suposta consciência
de imperador cativo.

Foste morrendo só
como sobremorrente
no lodoso telhado
(era prémio, castigo?)
de onde a vista captava
o que era abraço e não
durava ou se perdia
em guerra de extermínio,
horror de lado a lado.

E tudo foi a caça
veloz fugindo ao tiro
e o tiro se perdendo
em outra caça ou planta
ou barro, arame, gruta.
E a procura do tiro
e do atirador
(nem sequer tinha mãos),
procura, a procura
da razão de procura.

Não morres satisfeito,
morres desinformado.

(Tu? Eu?, Carlos Drummond de Andrade)

terça-feira, 22 de maio de 2012

reflexões de quem não tem sono e nada produtivo em vista... (7)

Diria que os momentos mais felizes de um projecto audacioso são intrínsecos ao resultado adjacente contudo este não é um deles, independentemente da dimensão do alcance. Já o caminho auspicioso, a labuta, as infinitas aspirações tornam-no memorável. A multiplicidade de aventuras move o aspirante, a curiosidade para além de cada porta ou muro alcançado, a idealização de uma vida alternativa preenchida de possibilidades e escolhas justificam toda uma existência fadada de compromissos. Para quê ser politicamente correcto, anseio o mundo nas minhas mãos, tal qual Charlie Chaplin brincando com o globo nos seus pés. No caso de essa analogia não ser realizável, então posso conformar-me com os sapatos vermelhos de Dorothy: se desejarmos o bastante, as ambições são concretizadas e obstáculos superados.
Era bom não era… Agora vai mas é trabalhar!!!

domingo, 13 de maio de 2012

Poesia

     Uns dias atrás deparei com uma omissão imperdoável, passou despercebido o dia da poesia neste blog. Como pude cometer tamanha vileza? Em minha defesa, todos os dias são dias da palavra. Filha de pais de ideologia romântica cresci com a poesia. Foram incalculáveis os ensejos que a agulha do gira-discos circulou no vinil de Eunice Munoz citando Florbela Espanca. Ainda consigo com relativa precisão distinguir as velhas falhas que a agulha teima em vincar e os recentes estragos pela continuidade do uso. As palavras melancólicas prolongavam-se, sentidas, sofridas pela voz que só muitos anos depois associei a um rosto.
    Foi sagrada a hora em que João Villaret e Mário Viegas, durante anos, exerceram com magnificência a singela tarefa de incorporar e partilhar esta forma de arte. Podia bater o pé para não jantar, porém quando estes dois senhores figuravam no ecrã televiso, os 4 pares de os olhos fixavam o ecrã e o silêncio era mandatário.
    Mais tarde, Natália Luisa, Carmen Dolores e Luis Miguel Sintra frequentaram a minha sala amiúde com o Acontece. Foram estes grandes senhores que me ensinaram a gostar e a ler poesia. A minha gratidão e vénia aos poetas e aos porta-vozes que difundem esta forma de escrita com igual singularidade e dignidade.
     (d Pseudoink)

segunda-feira, 7 de maio de 2012

 
(exposição dedicada a Fernando Pessoa, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa)

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
(Poema em linha recta, Álvaro de Campos)