terça-feira, 31 de janeiro de 2012


Viajar não faz bem apenas aos homens,
também é bom para os próprios percursos
ter homens que os percorram.
Um caminho é como uma casa:
é necessário abrir a janela, de vez em quando,
para que o ar circule.
Precisa de ser arejado, o caminho, e os homens
que o percorrem são os que executam este ofício.
São os homens e as mercadorias
que conservam a estrada.


Até o ar livre precisa de mudar de quando
em quando de ar. A circulação é um bem
inestimável para qualquer forma da natureza.        .
Uma competição de ciclismo que percorra uma
montanha é uma dádiva para a montanha.
Os animais e tudo se move
movem-se também em nome das coisas imóveis.
Sem movimento em seu redor
a montanha cairia como um vulgar edifício antigo.

Deves sustentar a montanha com a tua alegria.
Mas um edifício terrestre de uma cidade
precisa de algo mais: os restauros públicos
devem completar os amores privados que se atiram
docemente a uma casa.
A nossa casa só não cai porque existe nela a alegria,
Mas cai e cairá, cairá sempre, se não existir a alegria.
                                        (Uma viagem à Índia, Gonçalo M. Tavares)

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

O Grito

 Um homem grita na rua, grita com a força que à muito o havia abandonado, sendo tamanha a revolta e indignação contra si próprio. Uns dias antes tinha lesionado um dedo, foi um corte superficial, porém intencional. Estes pequenos subterfúgios acalmam-no, após a dor física sorri com a complacência de um cientista após uma experiência bem-sucedida.
  Jacob vive há dois anos numa pensão num quarto barato, com o chão alcatifado, umas nódoas aqui e ali, uma cama de solteiro com um colchão de suspensão um tanto avariada, uma mesa e uma cadeira. Quem o conheça detectaria sinais da sua presença no pequeno espaço, embora nada que o identificasse. A sua rotina diária é trabalhar até às 17 horas, recusar qualquer convite para uma socialização antes do jantar, beber umas cervejinhas num bar qualquer, comprar uma sopa no supermercado, noticiário das nove e cama. Há um ano ainda aceitava um convite esporádico para um evento colectivo, embora chegasse atrasado e fosse o primeiro a terminar a festa. Já passaram dois anos que ninguém vê o interior da sua casa e 10 anos que não partilha qualquer intimidade na sua ou noutra cama. Sente-se adormecido, um espectador desinteressado, não vê nem não olha para ninguém.
  A sua lassidão não espelha contudo, os conflitos internos diários, o quanto a sua inércia física e social o incomoda, a angústia de involuntariamente evitar o olhar de uma rapariga que engraçou no bar ou café, a anseia pulsante por um carinho, um toque, um sorriso. Alguém que acredite e simpatize com ele quando o próprio já não consegue. Os seus colegas e amigos não imaginam o quanto Jacob tem vergonha da sua existência.
(d Trintona)

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Acaso Lixado

  A minha ausência tem sido indefinida e intemporal, tropecei numa contingência de dimensão galáctica e sem precedentes para uma alma simples como eu.
Se não estou enganada tudo começou no dia 1 de Nov. 2011, era um dia cinzento, húmido e gélido tanto no sentido metafórico como meteorológico. Soturna mas passiva, com alguma tendência para o narcisismo como tem sido usual nos últimos compassos, concentrei-me na orientação espacial. Não estando traçada para tal habilidade encontrei-me numa rua cujos prédios e árvores estavam inclinadas de forma centrípeta e uma força alienígena exercia coerção num sentido preciso. Em poucos segundos encontrava-me à beira da origem da energia galáctica – era um buraco negro de tamanho insignificante.
  Tem sido uma luta aleivosa dada a minha dimensão humana. Dois passos para a calamidade, dois passos para a vidinha conhecida até então. Dada a época natalícia os super-heróis estão exaustos e sobrecarregados. A minha existência está prestes a desintegrar-se. Sem falhas temporárias de energia, dimensão religiosa, moral ou cívica, com uma eficiência precisa; vivi as minhas épocas festivas digladiando ferozmente, sem a generosidade de vilão regenerado ou herói reformado. Desalento e desespero permanecem no meu caminho e se avistam adiante.
  Cá nos encontraremos em dias melhores.
(d Trintona)