terça-feira, 24 de janeiro de 2012

O Grito

 Um homem grita na rua, grita com a força que à muito o havia abandonado, sendo tamanha a revolta e indignação contra si próprio. Uns dias antes tinha lesionado um dedo, foi um corte superficial, porém intencional. Estes pequenos subterfúgios acalmam-no, após a dor física sorri com a complacência de um cientista após uma experiência bem-sucedida.
  Jacob vive há dois anos numa pensão num quarto barato, com o chão alcatifado, umas nódoas aqui e ali, uma cama de solteiro com um colchão de suspensão um tanto avariada, uma mesa e uma cadeira. Quem o conheça detectaria sinais da sua presença no pequeno espaço, embora nada que o identificasse. A sua rotina diária é trabalhar até às 17 horas, recusar qualquer convite para uma socialização antes do jantar, beber umas cervejinhas num bar qualquer, comprar uma sopa no supermercado, noticiário das nove e cama. Há um ano ainda aceitava um convite esporádico para um evento colectivo, embora chegasse atrasado e fosse o primeiro a terminar a festa. Já passaram dois anos que ninguém vê o interior da sua casa e 10 anos que não partilha qualquer intimidade na sua ou noutra cama. Sente-se adormecido, um espectador desinteressado, não vê nem não olha para ninguém.
  A sua lassidão não espelha contudo, os conflitos internos diários, o quanto a sua inércia física e social o incomoda, a angústia de involuntariamente evitar o olhar de uma rapariga que engraçou no bar ou café, a anseia pulsante por um carinho, um toque, um sorriso. Alguém que acredite e simpatize com ele quando o próprio já não consegue. Os seus colegas e amigos não imaginam o quanto Jacob tem vergonha da sua existência.
(d Trintona)

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