terça-feira, 22 de novembro de 2011

Bullying

“Se atravessar, sentirei dor, pode ser que morra rápido. E se ficar estropiado? Tenho que pensar melhor nisto, talvez um prédio muito alto”- comentou à beira do passeio enquanto olhava para os carros a passar na Av. da República – “Sou um cobarde, nem consigo fazer uma coisa tão simples…”. Foi para casa, mais um dia, derrotado.
Como um ser tão franzino pode suportar tanta violência. Tinha apenas 16 anos e comportava tamanha mágoa e raiva. Só tinha dois amigos, contudo não desejavam de ser vistos com ele, “percebes, não é? Sabes como é?”, acena que sim com um sorriso demasiado doloroso enquanto procura um canto que garanta a sua invisibilidade. Hoje só lhe empurraram contra a parede, sentiu um ou dois pontapés e massajaram o seu pescoço, os agressores também podem ser benevolentes. Às 18 horas chegou a casa, jantou, viu televisão com os pais, fez os trabalhos de casa e foi dormir como todos os dias, e, como todos os dias chorou até fechar os olhos. Esporadicamente acordava revigorado e com um sorriso bebia o leite com cereais, tinha sonhado com a vingança impiedosa para com os infractores da sua liberdade.
Assim chegou aos 18 anos e terminou o 12ºano bem como os anos de sofrimento, das raparigas a dizer com escárnio que era demasiado feio até para estar na mesma sala que elas, dos murros nas costas pelo colega atrás, na sala de aula, enquanto tentava esquecer o que se passou no intervalo e que faltavam 35 minutos para o próximo… Terminou. Finalmente livre, “aguentei, consegui, sobrevivi” – soltou um riso louco, triunfante.
Vinte e dois anos depois, nervoso, com as cicatrizes da sua adolescência latentes, as mãos suadas e o coração apertado leva o filho para o primeiro dia de aulas do 5ºano. Promete para si mesmo que estará atento aos sinais, que vai proteger o filho. Sabe o quanto foi difícil sarar as feridas infligidas e esconder a sua fragilidade psicológica. 
(d Trintona)

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Cumplicidade

Estavam a tomar o pequeno-almoço na cozinha, num domingo solarengo porém fresco. Descontraídos. A sua face e cabelo cintilavam sob a graça dos raios solares, através da janela na porta. O labrador Toninhas de pêlo castanho clarinho dormitava na área do chão iluminada.
Parecia ser um domingo como os anteriores. Estavam frente a frente. Teresa, com a torrada trincada na mão, olhar ausente, expressão taciturna, deixa escapar “estou cansada”, disse-o baixinho contudo firme, acompanhado de um suspiro denso, comportando meio mundo. João levantou o olhar na sua direcção, sabia como tinha sido difícil aquele desabafo, percebia o que significava e a intensidade das palavras proferidas, a angústia que ela sentia vibrava.
Depois de as ter pronunciado, Teresa fixou os olhos na torrada trincada, sentia a preocupação do João. Vivem juntos há dois anos, contudo a cumplicidade e empatia pareciam intemporais. Após terminada a refeição, levantaram-se da mesa em silêncio, ele com um sorriso nos lábios, calmo, sereno; ela cabisbaixa, um pouco ansiosa, culpada. Vestiram-se com o intuito de passear o Toninhas. Antes de abrir a porta, sem qualquer aviso, fixou os seus olhos nos de Teresa e beijou-a com tanta intensidade que braços de dela ergueram-se e envolveram-no. Estiveram assim uns minutos. Quando o João abriu a porta para o mundo  Teresa sorria, a tempestade tinha amanado. 
(d Trintona)

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Assim entrámos nos batéis Batéis se foram de terra
tranquila quente de fim de dia
Praia ficou longe manchas de sangue desapareceram todas
mas mar não lavou
não pode lavar
Fumo de casas queimadas era preto
dançavam ao sol labaredas
Mesmo quando não houver fumo
haverá labareda
não apagará
Vimos terra desaparecer para sempre

ficar pequena como pedrinha
Vimos montes onde milho crescia e pássaros voavam
Vimos e vimos
última vez
Agora
como teremos notícias de quem fugiu
de quem morreu?
Como saberemos novas de nossos mortos?
Nunca mais beberemos água do poço
não dançaremos a bater pés na terra
como saberemos novas de nossos mortos?
Nunca mais caçaremos gazela atenta
ó criador
nunca mais ouviremos leão antes de atacar
como saberemos novas
ó cheio de cólera
como saberemos novas de nossos mortos?
                           (Um punhado de Terra, Pedro Eiras)